Fulano de Tal é colaborador da Casa Espírita já há mais de trinta anos. Cônscio de suas responsabilidades para com o próximo, estudou a Doutrina de forma diligente desde os primeiros contatos que teve com a mesma, e nunca parou. Tanto se esforçou por colaborar com a Casa que o acolheu que ao longo do tempo foi acumulando responsabilidades e trabalhos realizados. Hoje é um dos coordenadores do trabalho voluntário dessa Casa, e contabiliza inúmeros projetos realizados — sempre com o auxílio de várias dezenas de colaboradores, claro — em benefício do próximo, desde mutirões de limpeza e pintura na sede do Centro Espírita, passando pela organização de festas com o objetivo de angariar fundos para as atividades assistenciais da Casa, e chegando mesmo aos mutirões de coleta e distribuição de alimentos para comunidades carentes. Fulano é simples, disciplinado e muito comunicativo.
Sicrano de Tal é mais novo na mesma casa (e apesar do sobrenome ser o mesmo, não guarda parentesco com Fulano): tem “apenas” dez anos de serviços prestados à Casa. Estudante perene e dedicado da Doutrina e experimentado orador, é palestrante notável e ao longo de sua caminhada na Casa teve para si outorgada a responsabilidade de organizar as palestras periódicas, os agendamentos com palestrantes internos e externos, a organização da infra-estrutura necessária, e a divulgação dos eventos em si. Sicrano é amistoso, responsável e sempre disposto a ajudar.
Apesar do pouco contato, Fulano e Sicrano têm um relacionamento amistoso e cordial.
E tudo vai bem até o dia em que Sicrano, descobrindo que um orador querido de região distante estará na cidade em um dia próximo. Rapidamente põe-se a trabalhar: autorizado pela direção da Casa, entra em contato com o orador em questão, ambos acertam uma data para o evento — a única possível no momento e nos muitos meses vindouros — e a palestra está marcada. Durante a divulgação Sicrano recebe a informação de um dos colaboradores: a data definida coincide com um dos eventos de distribuição de alimentos coordenados por Fulano.
O que ocorre a partir daí é triste e lamentável: Fulano, pego de surpresa e incapaz de entender por que a palestra não poderia ter sido marcada para outro momento, se magoa com a inevitável perda de colaboradores, a maioria interessada em assistir a palestra do orador estimado. Por sua vez, Sicrano desconsidera as reclamações de Fulano, achando que a oportunidade única não pode ser perdida. E a partir dessa pequena escaramuça inicial, forma-se uma animosidade entre ambos. Dentro de seus próprios grupos são o que sempre foram: pedras de arrimo dos trabalhos que coordenam. Contudo, sem que quase ninguém saiba a não ser uns poucos colaboradores mais íntimos, passam a se desgostar mutuamente.
Em que pese a situação exposta acima ser fictícia, ela infelizmente reflete o cerne de um problema que não é incomum em várias Casas Espíritas em todos os lugares: as inimizades veladas entre seus colaboradores. E independente de qual sejam as razões alegadas para tais comportamentos, a verdade é que o diagnóstico central é um só: aqueles que se entregam a esses comportamentos deixam de ser Espíritas, pelo menos nos momentos em que nutrem mágoas recíprocas. São Espíritas durante quase todo o tempo, mas abandonam intencionalmente a Doutrina e seus ensinamentos quando se entregam às inimizades.
“Puxa vida,” alguém sempre pergunta, diante dessa afirmação, “será que é para tanto? Não será exagero afirmar que só por causa disso o sujeito deixa de ser Espírita, ainda que só por um tempinho?”
Avaliar se esse tipo de comportamento constitui ou não um abandono da Doutrina é questão de foro íntimo, claro, mas tal observação se alicerça em Kardec. Vejamos.
Encontramos no capítulo XVII, item 4 do Evangelho Segundo o Espiritismo, uma definição — simples e precisa, como tudo o que escreveu Kardec — extremamente significativa para esse assunto: “Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas más inclinações.”
Essa é uma definição de suma importância no que tange esse assunto em particular. Kardec afirma que o verdadeiro espírita — e esse termo “verdadeiro” mereceria por si só um volume inteiro de análises — é reconhecido “pelos
esforços que emprega para domar suas más inclinações” (grifo nosso). Em outras palavras, o verdadeiro espírita não é reconhecido por ter atingido a perfeição, nem pelo conhecimento doutrinário, nem pelo tempo que passa dentro do Centro Espírita, nem mesmo pelo tanto que trabalha em prol da Doutrina. A definição não se refere ainda ao sucesso em domar as más inclinações, observem. Ela fala, sim, do esforço de cada um no sentido de melhorar-se. (É justamente por isso que nenhum de nós que já ingressou nas lides Espíritas deveria dizer que está “tentando” ser Espírita. Nada disso: se todos nós nos esforçamos — ainda que muitas vezes sem sucesso — para nos melhorarmos, somos Espíritas no direito de sê-lo e de informá-lo a quem quer que nos interesse. Mas isso é outra questão, para um outro momento.)
Ocorre que nos exemplos acima, quando Fulano e Sicrano nutrem animosidades mútuas — um exemplo clássico de “má tendência” —, deixam explicitamente esse esforço de lado. Movidos pelo melindre, pela mágoa, pelo rancor dentro da Casa Espírita, rasgam ainda que temporariamente seus votos de fraternidade, compreensão, resignação e humildade e põem-se na posição de enfermos espirituais. No mais das vezes julgam-se detentores da razão, escudados por sua longa ficha de serviços prestados, pela importância para a Casa do trabalho de que são colaboradores, pelas intenções (sempre as melhores e as completamente desinteressadas) que guardam para com esses trabalhos e outras alegações que tais. E infelizmente ao se arvorarem em senhores da razão se afastam dos exemplos magnânimos do Cristo, de compreensão, de perdão, de resignação, de humildade.
Fulanos e Sicranos por aí afora continuarão com essas curtas (mas importantes e contundentes) “ausências” da Doutrina Espírita enquanto não examinarem seus íntimos e não buscarem aplicar também a essas situações dentro da Casa o manancial de conhecimento que certamente já adquiriram e já aplicam em seus trabalhos assistenciais.
E como podemos retornar
de vez para o caminho seguro da Doutrina? O próprio Cristo ensina:
"Reconciliai-vos o mais depressa possível com o vosso adversário, enquanto estais com ele a caminho, para que ele não vos entregue ao juiz, o juiz não vos entregue ao ministro da justiça e não sejais metido em prisão. Em verdade vos digo que daí não saireis, enquanto não houverdes pago o último ceitil."