Em 1510 Lutero iniciou a viagem que tempos depois alteraria para sempre o panorama do Cristianismo em nosso planeta. Seu destino era Roma — sede do Catolicismo — e o que ele encontrou na Cidade Eterna foi um cenário que sem dúvida diferia muito de suas expectativas. Ao invés do alicerce das esperanças trazidas ao mundo por Jesus, o célebre monge alemão deparou-se com a subversão completa dos valores Cristãos. Em lugar da prática da caridade, da consolação e do amparo, a Igreja Católica ameaçava seus fieis com o fogo eterno das penas infernais caso não adquirissem — a preços altos — indulgências para si e para os seus. Padres transformados em mercadores vendiam as promessas de perdão nas escadarias das igrejas, transformando-as em balcões de comércio, onde a felicidade das almas era vendida como se fora artigo manufaturado de fácil confecção.
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Ao voltar para a Alemanha, Lutero passaria a questionar as indulgências como instrumento de salvação, e não tardou para que severas ordens do Papa Leão X o obrigassem a renunciar de tais ideias subversivas. Conhecedor profundo da Doutrina Cristã que era, Lutero não se deixou abater pelas ordens papais, e aprofundando-se por anos em seus estudos, alicerçou seu raciocínio na própria Bíblia e nos concílios que definiram a fé Católica, emergindo dessa empreitada com as célebres 95 teses, que pregou à porta de sua igreja, em Wittenberg.
Instado a escolher entre obedecer às ordens papais, permanecendo assim no seio da Igreja Católica, e a excomunhão, Lutero percebeu que o Papa — como qualquer outro prelado da Igreja Católica, qualquer outro regente, qualquer outro nobre, ou qualquer outro membro da sociedade — era apenas um ser humano, e como tal, passível de erro. Entre as ordens papais e o que considerava serem os ideais puros do Cristianismo, optou pelo segundo caminho, sendo imediatamente excomungado, e dando início à Reforma Protestante.
Por que falar de Lutero? Porque — guardadas as devidas proporções — às vezes enfrentamos situações semelhantes na Casa Espírita, e tal como o famoso teólogo alemão, somos instados a escolher entre as ordens e opiniões humanas e as ideias puras e luminosas nos passadas pelos espíritos superiores através da Codificação de Kardec.
A Casa Espírita é, antes de qualquer coisa, uma organização cujas diretrizes ficam a cargo de seus dirigentes, que por sua vez dependem de suas consciências, do concurso dos espíritos amigos, e do trabalho de si mesmos e dos colaboradores da Casa para que essa possa levar a adiante seus trabalhos de consolação e de caridade. E por mais que sejam “estudados”, por mais que estejam na Casa há várias décadas, por mais que tenham se dedicado à causa Espírita por toda uma vida, por mais que tenham em sua folha corrida incontáveis horas de auxílio Cristão e prática da verdadeira caridade, ainda assim não estão acima da necessidade de passarem pelo crivo da razão.
Devemos-lhes respeito, obviamente, e tanto mais por muitas vezes serem os alicerces materiais e morais de nossa Casa Espírita. Devemos-lhes o reconhecimento pela importância que têm diante de nossa pequena comunidade e às vezes mesmo diante de grandes contingentes de simpatizantes da Doutrina, em nível local, estadual, nacional, ou até mesmo internacional. Devemos-lhe gratidão por tudo o que já fizeram pela Casa e pela Doutrina, levando abnegadamente a mensagem dos Espíritos Superiores a tantos necessitados encarnados e desencarnados. Contudo, em que pesem todas essas e muitas outras dívidas que temos para com esses “irmãos mais velhos”, não nos é lícito como Cristãos e como Espíritas hipotecarmos a eles — ou a quem quer que seja — nossa obediência cega. A Doutrina nos ensina que nem toda a gratidão e nem todo o respeito do mundo nos desoneram da responsabilidade de raciocinarmos por nós mesmos. Diante das escolhas, das decisões, ou mesmo das simples sugestões dos dirigentes de nossa Casa Espírita, temos — sempre — que levar seus motivos, objetivos e argumentos em conta, mas temos também — e novamente: sempre — a obrigação de passar tais motivos, objetivos e argumentos pelo crivo de Kardec antes de simplesmente acatarmos suas orientações. Penso que na vasta maioria dos casos, ao procedermos assim chegaremos à conclusão de que de fato as orientações de nossos diretores são acertadas, o que certamente contribuirá para que nossa confiança e gratidão para com estes diretores cresçam. Porém, há inúmeras situações na casuística Espírita que mostram que a substituição do pensamento crítico racional e fraterno pela obediência cega é caminho para problemas graves.
Justamente por serem — como nós — falíveis, passíveis de erro, os líderes de nossas Casas Espíritas às vezes agem em desacordo com os princípios que defendem. Não é a praxe, felizmente, e sem dúvida é substancialmente mais a exceção do que a regra, mas creio que muitos de nós teremos exemplos em nossa experiência de casos em que isso ocorre. Os problemas da vida, as atribulações diárias, a falta de tempo, o excesso de responsabilidades na Casa, por exemplo, são potenciais propiciadores de desvios que surgem o tempo todo em nossas vidas e nas vidas de nossos dirigentes. Não há dolo nesses casos, e devemos relevar as situações em que isso ocorre, até porque se fôssemos nós a decidir diante destas circunstâncias, muito provavelmente erraríamos com mais intensidade. Mas mesmo diante da necessidade de relevar, devemos — por obrigação maior que assumimos com a Doutrina — trabalhar por apontar com carinho e fraternidade o erro e a melhor forma de corrigi-lo. O silêncio temporário, penso eu, em muitos casos permite a reflexão de quem tomou a decisão menos acertada, e a necessária correção, como já argumentei no artigo "O calado sempre vence". Todavia nem sempre esse será o caso, e não podemos transformar silêncio temporário com negligência, sob pena de sermos coniventes com o erro. Em outros casos — mais extremos, porém bem mais raros — os tropeços ocorrem em função das antigas mazelas de nossa natureza: orgulho, egoísmo, vaidade, e que tais. Penso que mesmo nesses casos a emissão de quaisquer julgamentos seja absolutamente inoportuna, principalmente porque se voltássemos tais julgamentos para nós mesmos certamente encontraríamos muito mais motivos para admoestações do que no caso de nossos queridos dirigentes. Ainda assim, não julgar quem comete o desvio de conduta não deve se transformar em aval para o desvio, e também nesse caso o fraterno e carinhoso apontamento do erro e das possibilidades de acerto de acordo com a Doutrina é ato de caridade e cumprimento de dever.
Até porque se nos furtássemos de nossa responsabilidade de colaborar com o andamento da Casa dentro dos parâmetros codificados por Kardec, com o tempo estaríamos testemunhando o Espiritismo seguir o triste caminho que tantas outras doutrinas dogmáticas já seguiram. E sem sombra de dúvida, não foi a isso que os bons espíritos nos chamaram quando adentramos as lides Espíritas. Não, eles nos chamaram para defendermos os ideais de Jesus e a Lei do Pai Maior, lutando por atingirmos a evolução por nossos próprios atos e por nossa própria consciência, dentro, obviamente, do caminho ensinado pelo Cristo. Prova disso é a célebre passagem em que Emmanuel diz ao nosso saudoso Chico Xavier que se em algum momento suas instruções se desviassem do que foi codificado por Kardec, Chico deveria descartar as palavras do guia e benfeitor espiritual, e trilhar seus passos sobre o sólido alicerce trazido até nós pelo Codificador.
É claro que em qualquer circunstância, nosso pensamento, nossas ações e decisões devem estar sempre muito bem embasadas doutrinariamente, e, além disso, nossas intenções devem ser pautadas inexoravelmente pela caridade e pela fraternidade tão bem exemplificados pelo Cristo e por tantos outros prelados Cristãos e Espíritas ao longo da História. Para tanto, é necessário tanto o estudo incessante, quanto o estabelecimento do verdadeiro amor em nossos corações. Prescindindo do embasamento doutrinário, a crítica é personalista, muitas vezes movida pela paixão, sem o necessário embasamento da razão. Prescindindo da caridade e da fraternidade, tomam-lhes os lugares o orgulho e a vaidade, e a crítica foge completamente aos padrões Cristãos.
Mas dentro desses dois parâmetros — embasamento doutrinário e caridade — antes de qualquer coisa nosso compromisso é para com a Doutrina Espírita, e jamais deveríamos nos esquecer disso, mesmo que em tais situações entremos em conflito com nossos colegas e dirigentes.
Instado a escolher entre obedecer às ordens papais, permanecendo assim no seio da Igreja Católica, e a excomunhão, Lutero percebeu que o Papa — como qualquer outro prelado da Igreja Católica, qualquer outro regente, qualquer outro nobre, ou qualquer outro membro da sociedade — era apenas um ser humano, e como tal, passível de erro. Entre as ordens papais e o que considerava serem os ideais puros do Cristianismo, optou pelo segundo caminho, sendo imediatamente excomungado, e dando início à Reforma Protestante.
Por que falar de Lutero? Porque — guardadas as devidas proporções — às vezes enfrentamos situações semelhantes na Casa Espírita, e tal como o famoso teólogo alemão, somos instados a escolher entre as ordens e opiniões humanas e as ideias puras e luminosas nos passadas pelos espíritos superiores através da Codificação de Kardec.
A Casa Espírita é, antes de qualquer coisa, uma organização cujas diretrizes ficam a cargo de seus dirigentes, que por sua vez dependem de suas consciências, do concurso dos espíritos amigos, e do trabalho de si mesmos e dos colaboradores da Casa para que essa possa levar a adiante seus trabalhos de consolação e de caridade. E por mais que sejam “estudados”, por mais que estejam na Casa há várias décadas, por mais que tenham se dedicado à causa Espírita por toda uma vida, por mais que tenham em sua folha corrida incontáveis horas de auxílio Cristão e prática da verdadeira caridade, ainda assim não estão acima da necessidade de passarem pelo crivo da razão.
Devemos-lhes respeito, obviamente, e tanto mais por muitas vezes serem os alicerces materiais e morais de nossa Casa Espírita. Devemos-lhes o reconhecimento pela importância que têm diante de nossa pequena comunidade e às vezes mesmo diante de grandes contingentes de simpatizantes da Doutrina, em nível local, estadual, nacional, ou até mesmo internacional. Devemos-lhe gratidão por tudo o que já fizeram pela Casa e pela Doutrina, levando abnegadamente a mensagem dos Espíritos Superiores a tantos necessitados encarnados e desencarnados. Contudo, em que pesem todas essas e muitas outras dívidas que temos para com esses “irmãos mais velhos”, não nos é lícito como Cristãos e como Espíritas hipotecarmos a eles — ou a quem quer que seja — nossa obediência cega. A Doutrina nos ensina que nem toda a gratidão e nem todo o respeito do mundo nos desoneram da responsabilidade de raciocinarmos por nós mesmos. Diante das escolhas, das decisões, ou mesmo das simples sugestões dos dirigentes de nossa Casa Espírita, temos — sempre — que levar seus motivos, objetivos e argumentos em conta, mas temos também — e novamente: sempre — a obrigação de passar tais motivos, objetivos e argumentos pelo crivo de Kardec antes de simplesmente acatarmos suas orientações. Penso que na vasta maioria dos casos, ao procedermos assim chegaremos à conclusão de que de fato as orientações de nossos diretores são acertadas, o que certamente contribuirá para que nossa confiança e gratidão para com estes diretores cresçam. Porém, há inúmeras situações na casuística Espírita que mostram que a substituição do pensamento crítico racional e fraterno pela obediência cega é caminho para problemas graves.
Justamente por serem — como nós — falíveis, passíveis de erro, os líderes de nossas Casas Espíritas às vezes agem em desacordo com os princípios que defendem. Não é a praxe, felizmente, e sem dúvida é substancialmente mais a exceção do que a regra, mas creio que muitos de nós teremos exemplos em nossa experiência de casos em que isso ocorre. Os problemas da vida, as atribulações diárias, a falta de tempo, o excesso de responsabilidades na Casa, por exemplo, são potenciais propiciadores de desvios que surgem o tempo todo em nossas vidas e nas vidas de nossos dirigentes. Não há dolo nesses casos, e devemos relevar as situações em que isso ocorre, até porque se fôssemos nós a decidir diante destas circunstâncias, muito provavelmente erraríamos com mais intensidade. Mas mesmo diante da necessidade de relevar, devemos — por obrigação maior que assumimos com a Doutrina — trabalhar por apontar com carinho e fraternidade o erro e a melhor forma de corrigi-lo. O silêncio temporário, penso eu, em muitos casos permite a reflexão de quem tomou a decisão menos acertada, e a necessária correção, como já argumentei no artigo "O calado sempre vence". Todavia nem sempre esse será o caso, e não podemos transformar silêncio temporário com negligência, sob pena de sermos coniventes com o erro. Em outros casos — mais extremos, porém bem mais raros — os tropeços ocorrem em função das antigas mazelas de nossa natureza: orgulho, egoísmo, vaidade, e que tais. Penso que mesmo nesses casos a emissão de quaisquer julgamentos seja absolutamente inoportuna, principalmente porque se voltássemos tais julgamentos para nós mesmos certamente encontraríamos muito mais motivos para admoestações do que no caso de nossos queridos dirigentes. Ainda assim, não julgar quem comete o desvio de conduta não deve se transformar em aval para o desvio, e também nesse caso o fraterno e carinhoso apontamento do erro e das possibilidades de acerto de acordo com a Doutrina é ato de caridade e cumprimento de dever.
Até porque se nos furtássemos de nossa responsabilidade de colaborar com o andamento da Casa dentro dos parâmetros codificados por Kardec, com o tempo estaríamos testemunhando o Espiritismo seguir o triste caminho que tantas outras doutrinas dogmáticas já seguiram. E sem sombra de dúvida, não foi a isso que os bons espíritos nos chamaram quando adentramos as lides Espíritas. Não, eles nos chamaram para defendermos os ideais de Jesus e a Lei do Pai Maior, lutando por atingirmos a evolução por nossos próprios atos e por nossa própria consciência, dentro, obviamente, do caminho ensinado pelo Cristo. Prova disso é a célebre passagem em que Emmanuel diz ao nosso saudoso Chico Xavier que se em algum momento suas instruções se desviassem do que foi codificado por Kardec, Chico deveria descartar as palavras do guia e benfeitor espiritual, e trilhar seus passos sobre o sólido alicerce trazido até nós pelo Codificador.
É claro que em qualquer circunstância, nosso pensamento, nossas ações e decisões devem estar sempre muito bem embasadas doutrinariamente, e, além disso, nossas intenções devem ser pautadas inexoravelmente pela caridade e pela fraternidade tão bem exemplificados pelo Cristo e por tantos outros prelados Cristãos e Espíritas ao longo da História. Para tanto, é necessário tanto o estudo incessante, quanto o estabelecimento do verdadeiro amor em nossos corações. Prescindindo do embasamento doutrinário, a crítica é personalista, muitas vezes movida pela paixão, sem o necessário embasamento da razão. Prescindindo da caridade e da fraternidade, tomam-lhes os lugares o orgulho e a vaidade, e a crítica foge completamente aos padrões Cristãos.
Mas dentro desses dois parâmetros — embasamento doutrinário e caridade — antes de qualquer coisa nosso compromisso é para com a Doutrina Espírita, e jamais deveríamos nos esquecer disso, mesmo que em tais situações entremos em conflito com nossos colegas e dirigentes.